Notas sobre os efeitos da pandemia na vida das mulheres e a luta feminista
por Ilana Lemos de Paiva* e Luana Isabelle Cabral**
Muito se tem escrito e denunciado sobre a situação das mulheres durante a pandemia. Sobrecarga, desemprego, empobrecimento, violência… O presente ensaio visa refletir o motivo pelo qual as mulheres, em especial as mulheres negras e periféricas, têm sido impactadas mais fortemente pela crise ocasionada pelo novo coronavírus, e pensar sobre estratégias possíveis de enfrentamento, a partir do acúmulo da luta feminista.
Ora, não é de hoje que fica evidenciado que são as mulheres que mais sofrem em situações de crise. Como bem disse a antropóloga brasileira Lélia Gonzalez (1984), não chegamos a esse estado de coisas, nós é que nunca saímos dele. A divisão social hierarquizada, no Brasil, está marcada pelo nosso passado colonialista, escravagista e sexista, e delega às mulheres negras e empobrecidas, o trabalho reprodutivo de sustentação das elites. Ou seja, como afirma Silvia Federici, a tarefa dessas mulheres, na América Latina e na África, nunca foi o de reproduzir suas comunidades, mas “reproduzir a vida dos ricos” (2019).
De um modo geral, mulheres trabalhadoras brasileiras já vinham sentindo o impacto da reforma trabalhista, pois já ocupavam postos mais precarizados, ganhavam menos que os homens, e têm sido as mais afetadas pelo desemprego. De acordo com o Relatório das Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil (IBGE, 2019), há evidente vantagem dos homens brancos sobre os demais grupos populacionais, especialmente se os rendimentos são comparados aos das mulheres pretas ou pardas, que recebem menos da metade do que os homens brancos (44,4%).
Ou seja, mesmo antes da crise sanitária, econômica e politica no país, as mulheres já viviam desigualdades e subjugações estruturais. Com a reforma da previdência, para citar mais um exemplo, por terem salários menores, as mulheres também receberão menos com a aposentadoria, caso consigam se aposentar. Nesse contexto de total precarização, muitas mães solos precisam se desdobrar para dar conta da sobrevivência de suas famílias. Esse cenário foi intensificado com a pandemia do novo coronavírus, já que os empregos dominados por mulheres, majoritariamente na área do cuidado, tendem a ser mal remunerados e subvalorizados, o que significa que muitas das mulheres recém-desempregadas agora têm dificuldades financeiras maiores, como demonstram diversos estudos.
Apesar de muito ter se comentado a respeito da divisão do trabalho doméstico no período de isolamento social, essa não parece ser a realidade da maioria das mulheres, que ainda sentem a sobrecarga da divisão desigual das tarefas, e muito menos das famílias monomarentais.
Durante a pandemia, a ONU Mulheres[1] tem apontado um preocupante prognóstico para a população feminina mundial, tendo em vista que as trabalhadoras mulheres são maioria no setor de saúde, no trabalho doméstico e no setor informal, que foram duramente afetados pela crise. Além disso, as mulheres são maioria no setor têxtil, um dos mais afetados da indústria, em todo o mundo, e paralisado por causa do trabalho temporário de lojas.
Nos Estados Unidos, estudiosos também têm apontado que, pela primeira vez, em décadas, a crise econômica decorrente da pandemia tem um rosto feminino e não branco, predominantemente. A situação das mulheres é tão grave, que a crise tem sido chamada de “shecession”, referindo-se à recessão de 2008, que passou a ser conhecida como “mancession”, porque mais homens foram afetados à ocasião[2]. Outro relatório importante, o Tempo de Cuidar — O trabalho de cuidado mal remunerado, da Oxfam[3], mostrou o sexismo presente nas economias mundiais, já que as mulheres são responsáveis por 75% do trabalho de cuidado não remunerado realizado no mundo.
Dessa forma, a pandemia que vivenciamos tem demonstrado, de forma pedagógica, quais os efeitos das desigualdades e opressões, estruturais para o modo de produção capitalista, na vida das mulheres em todo o mundo.
Um aspecto importante escancarado pela crise atual refere-se ao período de necessário isolamento social. Para as mulheres que conseguem ficar em casa, essa opção nem sempre significa proteção, tendo em vista que, para muitas, ficar em casa significa estar em risco.
A violência contra a mulher, especialmente, a violência doméstica e familiar não é um fenômeno novo. Entre quatro paredes, dentro de casa, no âmbito privado, a violência é reproduzida há séculos. Em que pese as mulheres terem aberto caminho para uma maior conquista de direitos e reconhecimento como sujeitas políticas, a desigualdade de gênero permanece como um problema crônico, uma realidade perversa, como apontam os dados registrados. É uma questão crônica, pois está profundamente arraigada e, por vezes, naturalizada ao ponto de não provocar incômodos e questionamentos.
Angela Davis, na obra “estarão as prisões obsoletas” (2018), ressalta que, no período histórico em que as mulheres não eram reconhecidas como sujeitas políticas e, portanto, não tinham autodeterminação sobre suas vidas, quando essas mulheres eram privadas de liberdade — no início da história das prisões — elas tendiam a ficar muito mais tempo encarceradas, comparando-se ao tempo de permanência dos homens. Além disso, a permanência da violência doméstica e familiar contra as mulheres demonstra que os castigos físicos/corporais aplicados no ambiente privado se tornaram obsoletos para os homens, mas sobreviveram ao tempo e continuam sendo uma forma de controle e punição dos corpos femininos.
É urgente que entendamos o fenômeno da violência contra a mulher como algo imbricado nas relações sociais que, por sua vez, sustenta-se numa estrutura “patriarcal” — um termo que (de)marca a dominação e submissão ou sujeição das mulheres às figuras masculinas de suas vidas. Há uma delimitação de papéis sexuais e sociais atribuídos a homens e mulheres e uma expectativa social, cultural, econômica e política de que devemos assumir, afirmar e reproduzir esses papéis. Os modelos de masculinidade e feminilidade construídos socialmente são prejudiciais, violentos e desiguais.
Outro aspecto que gostaríamos de abordar é a própria naturalização e banalização da violência, especificamente, a violência doméstica e familiar. O Brasil ocupa os primeiros lugares no ranking de feminicídios, homicídios de pessoas LGBTs e militantes de direitos humanos. Esses dados nos dão elementos significativos sobre a cor/raça, idade, orientação sexual e identidade de gênero das pessoas que morrem. São mulheres negras, trabalhadoras, empobrecidas, trans*, as constantemente impedidas de existirem e serem quem são. Esses dados são alarmantes e querem nos dizer algo, será que estamos ouvindo?
É preciso falar sobre os efeitos da pandemia no cenário de violência doméstica e familiar contra as mulheres.
Levando em consideração o momento em que estamos vivendo, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, lançou dois boletins de quarentena, demonstrando o que os movimentos de mulheres alertam há algum tempo: o número de violência doméstica e familiar contra as mulheres tem aumentado. A convivência mais intensa com vários membros da família, as dificuldades de renda/trabalho e a própria pandemia de Covid-19, somadas às estruturas sexistas e racistas, transformam as estatísticas em um desafio recorrente. No primeiro boletim lançado pelo Fórum, em 16 de abril do corrente ano, foram comparados os dados entre março de 2019 e março de 2020. De modo geral, foi visto que o número de boletins de ocorrência (BOs) de agressões decorrentes de violência doméstica caiu, no entanto, os atendimentos realizados pela polícia militar sobre esse mesmo tipo de violência cresceram, assim como o número de feminicídios. No Rio Grande do Norte (RN), foram registrados quatro feminicídios em março de 2020.
Ainda de acordo com os dados do Fórum, uma filtragem feita nas redes sociais, com foco apenas nas mensagens que indicavam a ocorrência de violência doméstica, resultou em 5.583 menções: 25% do total de relatos de brigas de casal foram feitos às sextas-feiras; 53% dos relatos foram publicados à noite ou na madrugada, entre 20h e 3h e; 67% dos relatos foram de mulheres. Esses dados reforçam números já conhecidos: a violência doméstica e familiar contra a mulher costuma acontecer à noite e aos finais de semana.
Apesar de alguns avanços normativos e legislativos, como a Convenção de Belém do Pará (1994), e mais recentemente a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, a rede de proteção e garantia de direitos às mulheres ainda é muito incipiente e frágil. Para termos uma ideia, em todo o RN, existem cinco delegacias especializadas em atendimento à mulher (DEAMs), sendo duas em Natal. Apenas recentemente, uma dessas delegacias começou a atender em regime de plantão (24h). Sabemos que a existência da delegacia especializada por si mesma não garante proteção, ou mesmo a diminuição no número de violências e feminicídios. No entanto, políticas públicas de mulheres e a construção de uma rede de proteção são imprescindíveis para aumentar a visibilidade sobre o tema, informar e orientar as mulheres vítimas de violência, possibilitar ou contribuir para o rompimento do ciclo de violência, além de outras possibilidades que garantam a vida.
Com relação aos meses de março e abril, de acordo com a segunda publicação produzida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 143 mulheres foram mortas entre março e abril de 2020, em 12 Unidades Federativas. Continua menor o quantitativo de denúncias, o que nos aponta a dificuldade de deslocamento para realiza-la, o que não significa diminuição da violência, até porque, como no relatório anterior, o número de chamadas para a polícia militar segue aumentando, assim como as denúncias pelo disque 180 (aumento de 27%). Vale ressaltar que o fato das mulheres não conseguirem se deslocar para as DEAMs contribui para uma diminuição de medidas protetivas de urgência concedidas.
Por fim, de acordo com o Observatório da Violência (OBVIO), que realiza um mapeamento da violência letal intencional no RN, no início do distanciamento — entre os dias 12 e 30 de março — a violência doméstica cresceu 23% em relação ao ano anterior, enquanto que, no período maior de distanciamento — entre 12 de março e 18 de maio — o aumento foi de 259%. Em números, foram 206, em 2019, e 739, em 2020.
Embora a quarentena seja a medida mais segura, necessária e eficaz para evitar a transmissão e, assim, contribuir para minimizar os efeitos diretos da Covid-19, o regime de isolamento tem imposto uma série de consequências não apenas para os sistemas de saúde, mas também para a vida de milhares de mulheres que já viviam em situação de violência doméstica.
Sem lugar seguro, elas ficam obrigadas a permanecer mais tempo no próprio lar junto ao autor da violência, muitas vezes, em habitações precárias, com a presença também dos filhos, sem renda/trabalho ou com sua renda/trabalho diminuída. Como já mencionado, uma das consequências diretas dessa situação tem sido a diminuição das denúncias, uma vez que em função do isolamento muitas mulheres não têm conseguido sair de casa para fazê-la, ou têm medo de realizá-la pela aproximação do parceiro.
A Organização das Nações Unidas (ONU) tem recomendado aos países uma série de medidas para combater e prevenir a violência doméstica durante a pandemia. Entre as propostas, destacam-se maiores investimentos em serviços de atendimento online, estabelecimento de serviços de alerta de emergência em farmácias e supermercados e a criação de abrigos temporários para vítimas de violência de gênero.
“Nenhuma a menos”: redes comunitárias e luta feminista
O modelo de desenvolvimento atual, extremamente predatório, preocupado com o lucro em detrimento da vida das pessoas, tem provocado adoecimento e nos distanciado uns dos outros. Afinal, para qual “normalidade” queremos retornar? Vivemos um processo intenso de medicalização, sendo o Brasil um dos países que mais consome medicamentos psicotrópicos em todo o mundo, além de recorrentes processos de judicialização das nossas vidas e, ainda assim, permanecem os sentimentos de medo, insegurança e desamparo.
Para enfrentar a violência contra as mulheres é necessário pensar na violência gerada pelo processo de acumulação capitalista que se beneficia totalmente do trabalho doméstico não remunerado e da hiper exploração das mulheres em suas jornadas de trabalho extensivas. O que defendemos aqui é a necessidade de ampliar o entendimento sobre violência, concebendo esse fenômeno nos marcos da sociabilidade do capital.
As mulheres têm dado exemplos de lutas e resistências em todo o mundo. Os levantes provocados em vários países exigindo a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos e a descriminalização do aborto, além das denúncias sobre a exploração do trabalho feminino, sobre a violência e morte das mulheres, apontam que o caminho não está dado, mas que o acúmulo das lutas do passado e do presente tem aberto as possibilidades e construído uma agenda que, em última instância, contribua para a superação de toda e qualquer forma de exploração e opressão.
O acúmulo da dinâmica feminista tem muito a nos ensinar nesse momento de crise. A construção e fortalecimento de redes de solidariedade e sororidade entre mulheres, nos territórios, tem sido fundamentais no enfrentamento dos efeitos da pandemia que já estão colocados e os que estão por vir.
Gostaríamos de apontar um último lembrete. Acreditamos nas redes comunitárias e de sororidade que se apoiam na luta de classes feminista, articulando o cruzamento das pautas antirracistas, antipatriarcais e anticapitalistas. Como bem nos lembra bell hooks (2019), se as mulheres utilizam seu poder de classe ou de raça para dominar e explorar outras mulheres é impossível alcançar plenamente esta sororidade. As mulheres, diz-nos bell hooks, podem alcançar autorrealização e êxito sem estabelecer relações de domínio sobre as outras e, somente nesse sentido, a sororidade segue sendo poderosa.
*Ilana Lemos de Paiva é coordenadora do OBIJUV (UFRN), professora do departamento de Psicologia da UFRN, mulher nordestina, feminista e anticapitalista.
**Luana Isabelle Cabral é coordenadora do OBIJUV (UFRN), psicóloga, professora de Psicologia, mulher negra, feminista e anticapitalista.
Referências
Davis, Angela (2018). Estarão as prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel.
Federici, Silvia (2019). Mulheres e caça às bruxas: da idade média aos dias atuais. São Paulo: Boitempo.
Gonzalez, Lélia. (1984). Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223–244.
hooks, bell (2019). El feminismo es para todo el mundo. Madrid: Traficantes de sueños.
[1] Para saber mais: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2020/03/COVID19.pdf
[2] Ver: https://www.nytimes.com/2020/05/09/us/unemployment-coronavirus-women.html
[3] Acesse aqui: https://www.oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-davos/tempo-de-cuidar/#:~:text=BrasilTrabalhe%20Conosco-,Tempo%20de%20Cuidar,a%20crise%20global%20da%20desigualdade.